Análise do Poema “A galinha”, de Clarice Lispector


O narrador está distante, ele não conversa com o leitor, o seu lugar é fora da história. O conto “A galinha” pode ser analisado a partir do foco narrativo, onde pode-se averiguar as distinções do narrador para possibilitar a identificação do seu ponto de vista na narrativa. Pois, verifica-se que ele tem informações dos personagens que vão além das características físicas, incluindo também características psicológicas, demonstrando profundo conhecimento sobre os sentimentos e pensamentos dos personagens e, isso, é importante para o leitor compreender a narrativa, e dessa forma, fazendo a história parecer verídica.
Veja, por exemplo, os fragmentos retirados do conto que confirmam esta afirmação: “parecia calma”, “hesitante e trêmula”, “estúpida, tímida e livre” (LISPECTO, 1977), essas afirmações demonstram um caráter de zoomorfisação. Ou seja, estabelece intima relação da galinha com o ser humano, deixando esta de ser apenas um animal e ganhando feições humanísticas sendo digna sentimentos normalmente atribuídos aos seres humanos. O narrador demonstra peculiaridades de sentimentos da galinha que extrapola as suas características físicas.
O narrador fornece elementos para a composição do sentido na narrativa, mas ele é heterodiegético, ele não faz parte dos personagens e nem dialoga com o leitor. Ele se apresenta na terceira pessoa, distante do leitor e dos personagens, relatando os fatos com riqueza de detalhes de todos os personagens. O narrador heterodiegético “não faz parte do universo diegético – há uma distância entre ambos com uma focalização interna ou externa” (SANTOS e PINA, 2010, p. 23).
Percebe-se isso nas seguintes afirmações: “quando a escolheram”, “não souberam dizer se era gorda ou magra”, “passou a morar com a família” (LISPECTOR, 1977). A relação do narrador neste caso tem uma participação impessoal e objetiva, porém ele tem função importante para relatar o que passa no interior dos personagens destacando a galinha como a protagonista, a cozinheira como a mãe da família e coadjuvante na história, o homem no papel de pai e antagonista, pois ele é o perseguidor, provocador de conflito, e por fim, a menina, personagem que desperta a compaixão na narrativa. E pode representar a renovação de valores humanísticos, quando a galinha põe o ovo e a sua participação na história sobre este aspecto altera o desfecho da história. Neste contexto, pode-se afirmar ainda que o narrador também é onisciente por saber de muitos detalhes de características psicológicas dos personagens (pensamentos e sentimentos) (GENETTE, 1995). O conto desperta mais reflexão, pois é possível perceber, inclusive considerando que o na “construção do texto literário, a sua forma nasce das relações sociais e o conteúdo configura-se como uma interpretação dessas relações” (SANTOS e PINA, 2010, p. 15), que a personagem protagonista, “a galinha”, é uma representação simbólica que configura o papel da mulher no contexto sociocultural brasileiro, contexto esse assentado em princípios, valores e comportamentos machistas da época.
Neste caso, o leitor ainda tem a liberdade de fazer suas releituras a partir de seus repertórios literários e de letramento a fim de recriar, reinterpretar, de refazer e reinventar, pois a literatura tem esse poder de humanização por diferenciar-se, parafraseado Aristóteles (S/D, p. 306 apud SANTOS e PINA, 2010, p. 20), de relatar o que aconteceu, mas contar o que poderia ter acontecendo, e assim questionar o status quo em função da construção de um novo devir.  Os trechos na história que remetem a uma reflexão sobre esta relação sobre o papel da mulher na sociedade machista da época estão evidentes quando lemos “estúpida, tímida, e livre”, “não vitoriosa como seria um galo em fuga”, “de pura afobação a galinha pôs um ovo”, “nascida que fora para a maternidade parecia uma velha mãe habituada” (LISPECTO, 1977, 34).
            Como já foi comentado anteriormente, as relações que poder ser estabelecidas a partir dos termos “Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga” (LISPECTO, 1977, p. 35), são exatamente estas reflexões sobre o papel da mulher na sociedade brasileira imersa em uma cultura machista, onde os homens detém o poder patriarcal representado pelo controle político, econômico e social, dificultando a integração da mulher na sociedade na vida econômica, social, política e cultural nas cidades brasileiras.
O leitor pode refletir sua a sua própria história de vida, seja ele homem ou mulher, questionando-se a partir do lugar no qual se encontra se já não é o momento de possibilitar-se a incorporação do enfoque de gênero os espaços sociais e políticos nos diversos âmbitos da sociedade, e, principalmente, se já não é a hora de renovação desses valores, pois se não fizermos isso agora, as novas gerações, a exemplo do papel assumido pela menina na história, farão as transformações necessárias. Veja como o posicionamento dela muda as relações de opressão exercidas sobre a “galinha/a mulher” pelo macho alfa da família: “mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! Ela quer o nosso bem!” (LISPECTO, 1977, p. 35).
O fato de a galinha pôr um ovo parece entrar para o estágio de preparação para a maternidade equiparando-se à mãe. A maternidade significa preparação para o nascimento, para o novo, para a vida e logicamente representa o nascimento, a reprodução e a morte como fim de um ciclo. O ovo representa essa possibilidade de transformação de um estágio para o outro, do renascimento para a morte. Pois, como acabamos de firmar “nem ela própria contava consigo, como o galo crê na sua crista.” (LISPECTO, 1977, p. 35).
O ovo representou a possibilidade naquela família da renovação de uma cultura fundada no patriarcado, na cultura machista onde a mulher é constantemente subjugada e submetida à dominação masculina. As mulheres, apesar dos avanços, ainda continuam ocupando subespaços nas intâncias de decisões políticas, não são valorizadas nas suas tarefas do lar, recebem salários menores em relação aos homens quando ocupam as mesmas funções, quando conseguem colocação no mercado de trabalho ainda assumem as tarefas domésticas tendo, por tanto, uma ampliação da sua jorna de trabalho diário, tendo pouca valorização e reconhecimento. Essa dominação configura-se em uma violência simbólica, pois apesar de todo esforço que tanto a galinha quanto a mulher exercerceram para sobreviver, percebe-se que a galinha no final da história foi descartada. Por outro lado, pode-se compreender também que a morte faz parte também de um processo de renovação, pois é preciso nascer, crescer, perpetuar e morrer, como possibilidade de abertura para um novo ciclo.
Dessa maneira, compreendamos esse novo ciclo como o renascimento de novos valores fundados no reconhecimento e valorização da diversidade, maior abertura para a manifestação da força da mulher de maneira que ela não seja diferenciada dos homens mas que seja respeitada na sua condição de humanidade.

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